O caso do Frankenstein luso-brasileiro

Esta semana fiz a revisão de uma tradução bem peculiar, tanto que perguntei o nome do profissional à PM, pois queria ver se o conhecia ou se ele pertencia a algum dos fóruns de que participo. Minha intenção era dar uns toques a essa pessoa, mas como o nome dela não aparece em lugar algum da internet, resolvi escrever aqui. No final das contas, é até bom as dicas ficarem disponíveis publicamente, respeitando todo o sigilo necessário.

O que aconteceu?

O texto que a agência me enviou para revisar estava um verdadeiro Frankenstein luso-brasileiro. Sem demora, perguntei à PM se eu tinha entendido certo, que o texto era para o público brasileiro e comentei sobre o problema. Espantada, a PM confirmou que sim, não só o texto era brasileiro, como também a tradutora. Conversamos uns minutos pelo Skype, tentando entender como é que uma brasileira pode escrever trechos em português europeu num texto destinado ao Brasil. A resposta não tardou: culpa da TM, que estava uma salada! Percebi que todas as ocorrências de português europeu apareciam como 100% match.

De quem é a culpa?

Bom, a PM deve ser a culpada pela confusão com as TMs, pois ela sempre envia um arquivo atualizado a cada serviço.

O desconto aplicado pela agência por 100% matches deve ser o culpado pela “falta de atenção” da tradutora aos segmentos 100% “cuspidos” pela TM do cliente.

Em tempo, não era nada sutil. Foram mantidas frases inteiras que soam completamente estranhas aos ouvidos brasileiros, coisas como “inquérito” (em vez de “pesquisa”), “contacto”, “estamos a fazer”, “secção”, além daquelas frases com sujeito oculto quando brazucas usariam um “você” naturalmente, e muito mais. Também não foi uma única frase perdida… foram pelo menos três parágrafos.

O que a tradutora deveria ter feito?

A meu ver, nada justifica um profissional entregar um texto contendo duas variantes de um idioma sem ao menos se dar o trabalho de questionar ou informar o cliente sobre a situação.

Eu entendo que nenhum profissional quer ter o trabalho de retraduzir algo quando a TM deixa a desejar, e o cliente não paga a tarifa cheia. O problema poderia ter sido rapidamente solucionado com um e-mail ou papo no Skype, chutando a bola para o outro campo.

PM não é bicho nem inimigo do tradutor. A ideia é que esse profissional esteja disponível para solucionar problemas com o projeto. Não entendo como um tradutor detecta um problema assim e não comunica ao cliente. E o considero o caso muito pior se o tradutor nem tiver lido o texto. A impressão que me dá é que a tradutora em questão (1) nem leu o texto “cuspido” pela TM ou (2) leu e não estava nem aí para a qualidade nem a satisfação do cliente. Também desconfio que essa pessoa não faça uma leitura final do texto, que considero essencial. E é, ainda, um indício de que ela não usa corretor ortográfico.

E o lado bom de tudo isso?

Talvez a agência tenha aprendido uma lição, pois a PM comentou que deixou de contratar uma colega competentíssima para esse projeto porque “o orçamento do cliente final estava curto” para pagar a tarifa dela pela tradução.

Do meu lado, nem considero os trocados que ganhei a mais com a cirurgia plástica do Frankenstein (já que o cliente me paga por hora). Mas há um resultado óbvio da lei do mais forte ou, no caso, do mais competente. Enquanto esse profissional caiu no conceito da PM, que ficou muito decepcionada, eu fui considerada a salvadora da pátria: “Thank God you’re editing!” foram as palavras dela.

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Bianca Bold
é tradutora, intérprete, revisora, treinadora, legendadora, blogueira, mestranda, salseira/forrozeira/etc. e mãe da puggle mais linda do mundo. Se quiser mais informações, visite www.biancabold.com e www.translationclientzone.com.